domingo, 5 de abril de 2015

sono (haruki murakami)

a gente tinha ido na livraria apenas para comprar um presente para o meu padrasto e um livro novo para que eu e rodrigo léssemos antes de dormir (a espada de kuromori durou bastante, nesse ritmo de um capítulo por dia, mas como tudo na vida, um dia acabou!).
além de ter enfrentado umas semanas de insônia, eu tinha acabado de ler os caçadores de sonho, uma releitura feita pelo neil gaiman para uma lenda japonesa (que lhe interessou no que tinha de semelhanças e diferenças com Sandman), com ilustrações lindíssimas de yoshitaka amano. por isso, quando o edu viu na prateleira um livro chamado sono, que começava com uma personagem contando que não dormia há dezessete dias, e que ainda por cima tinha ilustrações muito bonitas (e perturbadoras) ele resolveu me dar de presente.
li em duas noites, encantada com a narrativa fluida do murakami - nunca tinha lido nada, apesar dele ser tão famoso e tão traduzido. mas ao mesmo tempo espantada de ler um homem falar com tanta propriedade de temas que eu só tinha lido de modo parecido em escritoras mulheres. me lembrei sobretudo da doris lessing e de um conto também perturbador, chamado "o quarto 19" (publicado em português pela Record, em livro homônimo) - nesse conto, os limites de gênero ficam muito claros na impossibilidade de existir privadamente, no sufocamento provocado pelo movimento centrífugo da vida doméstica, cotidiana, marcada pela intensidade das necessidades. em sono, não existe a mesma sensação de falta de ar, ao menos enquanto a mulher (de quem não conhecemos o nome) está mergulhada no dia a dia. é uma espécie de insônia que a acorda, após um sonho estranhíssimo, e só então elas vai se dando conta da estranheza da vida que se acostumou a viver.
é um conto que vai endurecendo, à medida que a personagem vai se dando conta do que significa suportar uma vigília constante, o que significa essa consciência excessiva e inescapável - mesmo que ela queira, como voltar a dormir? o conto fala dessa prisão que é o corpo, com suas demandas, com seu gênero (tendo a noite à sua disposição, ela logo se dá conta dos riscos). o conto talvez também fale do entorpecimento geral a que nos acomodamos, muitas vezes em nome da longevidade. mas sobretudo o conto fala do sabor da liberdade de existir sem testemunhas - de reservar um espaço e um tempo de cuidar do que é importante, sem depender da aprovação de ninguém, sem respeitar o que seria "cabível" ou "adequado". em tempos como os nossos - ainda que o conto seja do final dos 1990 - , não deixa de ser interessante pensar que a liberdade está contida nessa invisibilidade, nesse viver entre as sombras noturnas.

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