domingo, 5 de abril de 2015

sono (haruki murakami)

a gente tinha ido na livraria apenas para comprar um presente para o meu padrasto e um livro novo para que eu e rodrigo léssemos antes de dormir (a espada de kuromori durou bastante, nesse ritmo de um capítulo por dia, mas como tudo na vida, um dia acabou!).
além de ter enfrentado umas semanas de insônia, eu tinha acabado de ler os caçadores de sonho, uma releitura feita pelo neil gaiman para uma lenda japonesa (que lhe interessou no que tinha de semelhanças e diferenças com Sandman), com ilustrações lindíssimas de yoshitaka amano. por isso, quando o edu viu na prateleira um livro chamado sono, que começava com uma personagem contando que não dormia há dezessete dias, e que ainda por cima tinha ilustrações muito bonitas (e perturbadoras) ele resolveu me dar de presente.
li em duas noites, encantada com a narrativa fluida do murakami - nunca tinha lido nada, apesar dele ser tão famoso e tão traduzido. mas ao mesmo tempo espantada de ler um homem falar com tanta propriedade de temas que eu só tinha lido de modo parecido em escritoras mulheres. me lembrei sobretudo da doris lessing e de um conto também perturbador, chamado "o quarto 19" (publicado em português pela Record, em livro homônimo) - nesse conto, os limites de gênero ficam muito claros na impossibilidade de existir privadamente, no sufocamento provocado pelo movimento centrífugo da vida doméstica, cotidiana, marcada pela intensidade das necessidades. em sono, não existe a mesma sensação de falta de ar, ao menos enquanto a mulher (de quem não conhecemos o nome) está mergulhada no dia a dia. é uma espécie de insônia que a acorda, após um sonho estranhíssimo, e só então elas vai se dando conta da estranheza da vida que se acostumou a viver.
é um conto que vai endurecendo, à medida que a personagem vai se dando conta do que significa suportar uma vigília constante, o que significa essa consciência excessiva e inescapável - mesmo que ela queira, como voltar a dormir? o conto fala dessa prisão que é o corpo, com suas demandas, com seu gênero (tendo a noite à sua disposição, ela logo se dá conta dos riscos). o conto talvez também fale do entorpecimento geral a que nos acomodamos, muitas vezes em nome da longevidade. mas sobretudo o conto fala do sabor da liberdade de existir sem testemunhas - de reservar um espaço e um tempo de cuidar do que é importante, sem depender da aprovação de ninguém, sem respeitar o que seria "cabível" ou "adequado". em tempos como os nossos - ainda que o conto seja do final dos 1990 - , não deixa de ser interessante pensar que a liberdade está contida nessa invisibilidade, nesse viver entre as sombras noturnas.

quarta-feira, 3 de setembro de 2014

incêndios

(ao som de radiohead)


desde janeiro, elegi 2014 como um ano de cultivar a rememoração. cultivar no sentido da cultura como cuidado com o os vivos e o presente, mas também como respeito aos mortos - o que também significa ouvi-los no presente, deixar-se ser interpelado pelo sentido trágico de suas vidas. afinal: em 2014, são cem anos desde o início da I Guerra Mundial. cinquenta desde o golpe civil-militar no Brasil. vinte desde o genocídio em Ruanda.

tenho lido por isso muitos livros e assistido muitos filmes sobre tais assuntos. sempre me dividindo entre reunir coragem para enfrentar tais horrores - e enfrentá-los como horrores humanos, também meus - e me dando espaço para também, por vezes, olhar para outro lado: ler gibi, assistir seriado, passar um dia plantando e replantando flores e matos...

e aí, por razões que não têm exatamente a ver com essas, embora tenham tudo a ver com o problema do presente e da memória, meu amigo julio me falou de incêndios. edu e eu assistimos o filme há uns dez dias e é, de fato, um filme lindíssimo. e muito perturbador. e por isso mesmo bastante potente. depois de ver o filme, acabei lendo também a peça de wadji mouawad e as reflexões que se seguem foram provocadas tanto pelo filme quanto pela leitura.

é difícil falar do filme e do livro sem remeter ao enredo, em especial porque se trata de um filme que se estrutura sobre a descoberta da verdade. mas vou tentar.

também é difícil falar do filme e do livro sem remeter a Édipo Rei, que Aristóteles toma como modelo da tragédia. não vou tentar evitar o assunto, ainda mais porque a comparação com Édipo é reveladora de alguns de nossos dilemas presentes.

depois de assistir o filme e acabar de ler a peça, em algum momento da noite acordei pensando que Foucault ficou tão interpelado pelo Édipo Rei, pela questão da verdade. mas há também uma certa tradição que pensa a peça de Sófocles como o acontecimento que dá forma a categoria "vontade" que vinha se constituindo na experiência ocidental: Jocasta e Laio tentam escapar de seu destino, terrível e revelado por um adivinho, e é por isso mesmo que eles todos são levados inexoravelmente a ele. a vontade humana, insurgente, é também inútil: essa tentativa de fuga ao destino é obscurecida numa rede de segredos e lealdades e - central para o desenvolvimento da trama - compaixão, deixando todos os seus participantes cegos e incapazes de fazer frente à força dos fatos que a própria tentativa de escapar desencadeia. Jocasta e Laio tentam fugir da verdade em Tebas; Édipo tenta fugir da mesma verdade em Corinto e a fatalidade se impõe a partir de um mau encontro numa tríplice encruzilhada.

de todo modo, quando a verdade reaparece, ela revela a todos que o destino se cumpriu. um horror de algo que, apesar de tudo, estava de acordo com uma espécie de vontade dos deuses (ou má vontade em evitá-lo). Em Édipo, há no destino, senão coerência, um sentido de necessidade. Mas em Édipo há o problema da vontade desorganizadora, tanto mais porque contrária a uma vontade maior e mais forte, inescapável, superior. esse é o cerne da tragédia: o embate entre uma vontade impotente e uma vontade que nunca desvia, certeira. a verdade, assim, é a recomposição da trilha de vontades que leva ao desfecho; as peripécias são essa caminhada de volta - tudo aquilo que se revela no refazer dos caminhos. é assim que o estrangeiro se encontra em casa.

incêndios é o trágico mais contemporâneo, que ao mesmo tempo repete e desloca os problemas colocados pelo Édipo. há uma questão subjacente que é a da imanência do mundo: não há referência a deuses ou a um deus em nenhum momento, que eu me lembre. A cultura, a tradição são forças presentes, mas elas não são referidas a outro mundo: estamos aqui, irremediavelmente aqui, nessa terra, nesses tempos, muitas vezes em guerras que não escolhemos, nossa vontade atravessados por práticas das quais não temos como escapar. nós, seres trágicos, a faca no pescoço.

ainda assim, parece haver uma vontade superior à nossa, emaranhados que estamos aos fios da própria história: ao ciclo de ofensas e vinganças, interminável, inescapável. mas é bonito, porque o que conduz o destino não é o esforço em escapar ao vaticínio, mas uma promessa (e depois outras) também imanentes, pois feitas entre pessoas: é da ordem propriamente ética que se desdobra o drama, do esforço de ser fiel à promessa de romper a tradição, romper o encadeamento das ofensas e vinganças ("incêncios" é a terceira parte de uma tetralogia que se chama, justamente, "o sangue das promessas"). a promessa de tornar possível uma outra forma de estar juntos. pois a peça volta e meia retoma essa frase-testamento dita por Nawal: "agora que estamos juntos, melhorou".

é muito bonita (e dolorosa e intensa) como Nawal leva esses filhos que ela ama e que não ama à verdade - como se a falta de amor abrisse a possibilidade de conduzi-los à verdade; como se o amor pudesse brotar possível depois da verdade pesar até o ponto do esmagamento. um silêncio que é uma pedra no peito - e que faz a gente perder o fôlego só de cogitar enunciar a verdade.

abrindo as pistas de um caminho que é ao mesmo tempo retorno e passo adiante, Nawal abre a seus filhos a possibilidade de inscreverem seu lugar no mundo, alfabetizados e letrados nas durezas e na verdade. eles também começam a construir um lugar fora daquele atribuído à vítima (pois que vítimas também foram) - essa figura que sofre as dores inevitáveis do acidente e se vê despojada de potência e vontade. os filhos de Nawal não são esmagados pela verdade: terminam a peça ouvindo o silêncio da mãe, esse silêncio eloquente e intenso.

em tempos tão cínicos - quando a verdade é escancaradamente dita porque evidente, porque é "assim mesmo que as coisas são", e por isso mesmo nada causa escândalo ou faz tabu - é notável que a verdade, finalmente clara, não seja dramatizada com excessos e psicologismos. ela simplesmente está a luz, e interpela no presente cada uma das personagens. o propriamente trágico está no fluxo do tempo, na historicidade onde a gente vive mergulhado. e é sempre presente.

lembrei de um trechinho da Jeanne-Marie Gagnebin:

Não temos que pedir desculpas quando, por sorte, não somos os herdeiros diretos de um massacre; e se, ademais, não somos privados da palavra, mas, ao contrário, se podemos fazer do exercício da palavra um dos campos de nossa atividade (como, por exemplo, na universidade), então nossa tarefa consistiria, talvez, muito mais em restabelecer o espaço simbólico onde se possa articular aquele que Hèléne Piralian e Janine Altounian chamam de “terceiro” – isto é, aquele que não faz parte do círculo infernal do torturador e do torturado, do assassino e do assassinado, aquilo que, “inscrevendo um possível alhures fora do par mortífero algoz-vítima, dá novamente um sentido humano ao mundo. No sonho de Primo Levi, deveria ser a função dos ouvintes, que, em vez disso e para desespero do sonhador, vão embora, não querem saber, não querem permitir que essa história, ofegante e sempre ameaçada por sua própria impossibilidade, os alcance, ameace também sua linguagem ainda tranquila; mas somente assim poderia essa história ser retomada e transmitida em palavras diferentes. Nesse sentido, uma ampliação do conceito de testemunha se torna necessária; testemunha não seria somente aquele que viu com seus próprios olhos, o histor de Heródoto, a testemunha direta. Testemunha também seria aquele que não vai embora, que consegue ouvir a narração insuportável do outro e que aceita que suas palavras levem adiante, como num revezamento, a história do outro: não por culpabilidade ou por compaixão, mas porque somente a transmissão simbólica, assumida apesar e por causa do sofrimento indizível, somente essa retomada reflexiva do passado pode nos ajudar a não repeti-lo infinitamente, mas a ousar esboçar outra história, a inventar o presente (GAGNEBIN, 2006: p.57; grifos meus).

quarta-feira, 13 de agosto de 2014

sexta-feira, 18 de abril de 2014

De formigas e encontros

(post muito antigo escrito antes mesmo de eu ter um blog como uma espécie de "post convidado" no blog que o Mauricio tinha; rememorado por conta da morte do Gabriel Garcia Márquez).
 
Coincidentemente ou não, esta noite sonhei com formigas. Montes delas, saindo por debaixo dos tapetes da casa. Ponho em dúvida a coincidência porque tenho pensado em como entabular conversa sobre o tema cabeludo que o Maurice me arrumou. E aí, tendo sonhado com formigas, lembrei-me de um livro que o Mauricio nunca vai ler: Cem anos de solidão.

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Contando os cem anos da saga familiar dos Buendía, o livro é a narrativa da tragédia dos destinos escritos. Todos os personagens da família estão marcados, de algum modo, por uma espécie de incomunicabilidade que torna inescapável a sua solidão. Ao fim do livro, vejam só que bela imagem, o desfecho se cumpre ao mesmo tempo em que o último da linhagem está lendo o livro no qual um cigano escrevera o destino inteiro dos Buendía. E a fatalidade se anuncia no momento no qual o futuro se realiza no presente, sem mais possibilidades de mudanças. É esse o momento em que a história inteira da família é banida da memória dos homens. As imagens são pefeitas para pensar sobre o que o Maurice pediu: solidão e finitude, fatalidade e inelutabilidade.

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O Maurice costuma dizer que eu leio mundo pelo viés da esperança; que, não encontrando razões para acreditar, eu as invento. Para mim, os encontros sempre fazem valer a vida e recriam um mundo no qual a vida é graça – no sentido mais epifânico do termo.

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“...Provaram um do outro no colo da manhã. E viram que isso era bom”. (Caio Fernando Abreu).

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Voltando ao Garcia Márquez, a família Buendía inteira está condenada pela crença de que a solidão e a tragédia são suas condições essenciais. A vida, assim, torna-se simplesmente espera de que a dor se cumpra. Nenhum deles consegue amar de fato porque nenhum deles consegue se vincular ao outro – estão todos fadados à miséria de sua solidão e o estão por já não crerem na superação desta condição.

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Somos homens, finitos, mortais, de algum modo incomunicáveis. Tal é a tragédia de nossa condição. No entanto, temos a nosso alcance a possibilidade de criar maneiras de tentar superar a finitude, a mortalidade e a incomunicabilidade: o desejo, a arte, amores, amizade. Momentos de encontro no qual alguma grandeza relampeja em nossa condição. Foi o Mauricio mesmo quem me ensinou: grandeza e miséria.

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Os Buendía, incapazes de se pensarem para além dos vaticínios repetidos por cem anos, se extinguem da memória dos homens no instante em que permitem que a tragédia se realize. Mas para impedir que ela se realizasse, seria preciso que algum deles tivesse a coragem de Sísifo, de recusar sua condição, e instaurasse neste ato criador, uma outra forma de estar vivo.

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Para conquistarmos o direito de pertencer à memória dos homens, é preciso estar entre os homens, viver entre eles. Admitir o encontro como possibilidade porque é dos encontros que brota aquilo capaz de entreabrir as portas do tempo e do espaço, entreabrir as portas da solidão e da finitude. E é preciso dizer que não me refiro apenas ao amor erótico, mas a todas as formas de encontro. Também falaria de amizade, mas o Mauricio pode falar disso muito melhor do que eu.

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Então, para não ocupar muito mais do espaço que o Maurice tão generosamente me abriu, é mais ou menos isso: o fato de sermos sós, de sermos filhos do tempo, não nos rouba, não nos deve roubar, a grandeza do encontros. Mesmo que estes sejam fugazes, mesmo que não sejam eternos, mesmo que sejam as pequenas epifanias. A vida se alimenta dela mesma e para estar vivo é preciso lutar – com nossa condição, com nossos parcos instrumentos de comunicação (“Lutar com palavras é a luta mais vã”, Drummond). Fugir dos cem anos de solidão reinventando vaticínios. Eu, por exemplo, gostaria de pôr em palavras os fios de beleza que escorrem nos momentos de encontro. Desejando que eles teçam para nós outro destino, onde caibam felicidades, alegrias, encontros. Ou pelo menos sua possibilidade.

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 “O amor translada ao corpo os atributos da alma e esta cessa de ser uma prisão. (...) O amor mistura a terra ao céu: é a grande subversão. Toda vez que o amante diz: “eu te amo para sempre”, ele transfere a uma criatura efêmera e cambiante dois atributos divinos: a imortalidade e a imutabilidade. A contradição é, na verdade, trágica: nossa carne se corrompe, nossos dias estão contados. Somos filhos do tempo e ninguém escapa da morte. Contudo, amamos, com o corpo e com a alma, de corpo e alma. (...) Mas o amor é a resposta que o homem encontrou para olhar de frente a morte. Pelo amor roubamos ao tempo, que nos mata, instantes que ora transformamos em paraíso, ora em inferno. Para além da felicidade ou da infelicidade, o amor é, sobretudo, intensidade. Ele não nos presenteia com a eternidade, mas com a vivacidade; o momento durante o qual se entreabrem as portas do tempo e do espaço. No amor tudo é dois, e tudo aspira a ser um”, (Octavio Paz).

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É necessário dizer ainda que este texto é dedicado ao Edu, com quem o encontro sempre alarga as margens de estar viva.

quinta-feira, 27 de março de 2014

desafiando a gravidade*

Desde o final do ano passado que Rodrigo e eu retomamos uma prática tão comum quanto ele era pequenino: ler livros juntos. É engraçado, mas depois que ele aprendeu a ler, a gente foi abandonando esse hábito que era tão gostoso - quando ele sentava no meu colo e a gente ia lendo e olhando as ilustrações e ele ia acompanhando com atenção as histórias, muitas vezes repetidas à exaustão. Ele gosta de ler, é um leitorzinho voraz. Mas nem por isso precisamos abandonar a atividade comum.
Aí a Veronika comentou sobre Cósmico e a gente ficou curioso. E resolvemos começar a ler. Juntos. Um capítulo por noite, antes de dormir.
E o livro é mesmo absolutamente encantador. É muito divertido, mas essa nem é sua característica mais sedutora: o livro é também uma bonita reflexão sobre paternidade/parentalidade e, mais ainda, sobre quão dura pode ser a cisão abismal entre infância e vida adulta.
Liam e Florida são personagens centrais da história. Liam é um menino de doze anos, que por um mistério ficou grande, barbado e passou a ser subitamente visto como um homem. Um homem jovem, de idade indefinida, mas um homem. E é super bonito como ele vai aos poucos passando da posição de ver a vantagem nessa mudança para lamentar que ele seja sempre julgado por seu tamanho. "Um rapaz do seu tamanho não deveria...", é o que passa a escutar de desconhecidos. E o que raios tem tamanho a ver com maturidade, ele se pergunta? Por que ninguém consegue ver que ele é um menino, e um menino de doze anos? Dá pra sentir a angústia de todas as crianças, frequentemente presas na armadilha de que são sempre pequenas demais para algumas coisas e grandes demais pra outras (e, em geral, são pequenas pra experimentar coisas legais e pequenas demais pra continuar fazendo algumas coisas legais!).
Então, Cósmico traz essa reflexão sobre o descolamento entre o tamanho que a gente parece ter e o tamanho que sentimos ter. Desvela o processo pelo meio do qual a gente nunca cresce num único sentido e é meio como Alice - de vez em quando gigante, de vez em quando formiga...
Mas Cósmico também é uma reflexão sobre paternidade/parentalidade. Os pais que aparecem no livro - à exceção do pai de Liam - são odiosos. Eles não enxergam seus filhos como crianças (mesmo eles não tendo o 1,80m de Liam) e nem enxergam seus filhos de fato: os filhos são as projeções de si mesmos, de seus sonhos de grandeza, de riqueza. Há razões para que seja assim, como a gente vai descobrindo, e eles não são maus, senão equivocados. Tipo: muito equivocados.
Em sua jornada no espaço, Liam descobre-se ao mesmo tempo um menino (de doze anos, assustado e querendo chamar seu pai) e um homem bem maior que seu 1,80m: ele vai até o espaço para se colocar no lugar do seu pai e compreendê-lo, assumir seu lugar. O menino de doze anos é o melhor pai que os outros meninos já tiveram!
É difícil falar do livro sem tratar do desfecho, mas vou tentar: a solução que o autor dá ao livro é também muito delicada. Ele não resolve as coisas por decreto: a solução é outra, menos evidente. "O pai" é o rastro, pouco visível, traçado justamente quando ele se ausenta e é possível, pela primeira vez, uma ação sem sua sombra.
Tem também uma outra coisa no livro que chama a atenção: a quase obsessão de Liam com a gravidade. De fato, é o desencadeador de todo o drama. Liam quer saber tudo e experimentar a sensação da falta de peso. Para alguém que se sente aprisionado num corpo desencontrado em relação a si mesmo, essa é uma obsessão compreensível: quando o corpo se torna menos pesado? ou, mais precisamente, em que situações a correlação entre a força da gravidade e massa modifica o peso? em que situações é possível simplesmente flutuar? e o quanto esse breve momento pode modificar toda uma vida - todo o peso suportável, relativizado pela lembrança querida de um instante em que uma liberdade foi possível?

* o título da postagem é de canção do musical Wicked.

quarta-feira, 26 de fevereiro de 2014

o que pode a literatura?

A literatura pode muito. Ela pode nos estender a mão quando estamos profundamente deprimidos, nos tornar ainda mais próximos dos outros seres humanos que nos cercam, nos fazer compreender melhor o mundo e nos ajudar a viver. Não que ela seja, antes de tudo, uma técnica de cuidado para com a alma; porém, revelação do mundo, ela pode também, em seu percurso, nos transformar a cada um de nós a partir de dentro. A literatura tem um papel vital a cumprir; mas por isso é preciso tomá-la no sentido amplo e intenso que prevaleceu na Europa até fins do século XIX e que hoje é marginalizado, quando triunfa uma concepção absurdamente reduzida do literário. O leitor comum, que continua a procurar nas obras que lê aquilo que pode dar sentido à sua vida, tem razão contra professores, críticos e escritores que lhe dizem que a literatura só fala de si mesma ou que apenas pode ensinar o desespero. Se esse leitor não tivesse razão, a leitura estaria condenada a desaparecer num curto prazo. (Tzvetan Todorov. O que pode a literatura? In: ___. A literatura em perigo. 4ª ed, Rio de Janeiro: Difel, 2012. Trad.: Caio Meira, p.76-7).

terça-feira, 25 de fevereiro de 2014

Nós mesmos a sós

(já que está difícil escrever sobre os livros que ando lendo, resolvi começar trazendo pra cá as notas sobre livros que li há algum tempo. quem sabe assim me obrigo a cumprir a intenção de não deixar as impressões e sensações se perderem na correnteza. é que anda forte, a dita cuja. e aí haja braço pra se ancorar nas margens...).
Depois de ter escrito de ter revisto o filme e escutado a trilha do Les chansons d'amour incontáveis vezes, fiquei pensando no amor e na solidão. Parece um pouco cinza dizer assim, como se eu andasse triste ou melancólica, mas não é bem isso: é mais um exercício de pensar que a beleza do filme se produz bem nesse interstício entre um amor duradouro, com todos os seus problemas, e certa solidão que nem mesmo a companhia parece fazer desaparecer. Ainda assim, se alguma chance de escapar existe, a aposta é ainda no amor - na presença de outro, que nos ama e a quem amamos, que nos toca, nos abraça, que modifica o mundo ao enchê-lo de sinais.

E depois de rever o filme, pensei também no conto-novela do Caio Fernando Abreu, "Pela Noite" (Estranhos Estrangeiros: São Paulo, Companhia das Letras, 2002), de que gosto tanto e que fala também de modo tão dolorido sobre desencontros e sobre a graça do encontro - reconhecimento e mergulho cego no outro, no corpo do outro. E que armadilha que, como nós, o outro também tenha um corpo por continente, um corpo vivo que pulsa, sangra e goza, mas que também muda de ideia e parte ou, exagero de abandono, morre.

Com todas essas coisas na cabeça, ainda fui ler O fuzil de caça, de Yasouchi Inoue. Quem me falou do livro havia mesmo comentado sobre a excessiva solidão da personagem, mas é realmente impressionante como Inoue - ao lançar mão das cartas para contar a história - nos coloca em uma posição de solidão parecida à de Josuke Misugi. Como a personagem, ficamos na mesma posição de ler e aceitar as decisões de três mulheres importantes em sua vida, que ao mesmo tempo em que escrevem para ele, escrevem apesar dele, escrevem para se livrar dele. É tão triste e tão exato que a personagem principal quase não apareça, senão do modo como as três mulheres o pronunciam.

O livro é de 1949 e os ecos da experiência da II Guerra aparecem aqui e ali. Não apenas por isso,  me fez lembrar, embora não imediatamente, do livro de Graham Greene, Fim de Caso. O livro de Greene é de 1951, e acabei me lembrando dele principalmente por conta de um elemento que - para mim - pareceu bastante estranho na narrativa de Inoue: a presença da ideia de pecado.

A indicação do livro de Inoue me foi feita em meio a uma conversa sobre literatura japonesa e também em meio a um comentário sobre o estranhamento provocado, numa mesa sobre desemprego e experiências de desempregados, pela apresentação de pesquisadores japoneses que apontavam a centralidade do sentimento de vergonha para a compreensão das experiências subjetivas dos desempregados japoneses. Participando da mesa, havia finlandeses, alemães, suecos... e eles eram visivelmente incapazes de compreender que fosse possível alguém sentir vergonha; culpa, certamente, mas vergonha? São matrizes de codificação moral bastante diferentes.

Por isso me espantou tanto a sedução que a ideia de pecado assume na narrativa de Inoue - algo que agrega ao "erro" o peso do segredo. O interessante é que é uma ideia de pecado ela mesma estranha (para nós, ocidentais), pois que à revelação não sucede nenhuma salvação; à revelação parece suceder a súbita compreensão justamente da inadequação da própria sensação de pecado. O peso não vai embora devido à  algo como uma expiação, mas porque é o próprio pecado que se dissipa.

A solidão, no romance de Inoue, parece vir do oco dos rituais, símbolos e códigos. A distância irremediável a que todos os personagens estão submetidos, em relação uns aos outros, marca um absoluto desencontro. E aquilo que podia assumir o caráter de ponte - as cartas honestas e claras dirigidas à Josuke Misagi - revela uma ruptura ainda mais intensa, dando realidade a uma solidão que já se inflitrava pelos poros daquela vida.

Muito diferente, portanto, da tensão e da angústia de Fim de Caso, em que o pecado nunca pode ser expiado, mas é amenizado por meio de uma distância artificialmente criada: solidão auto-infligida e imposta ao outro, visando uma salvação absolutamente mundana. O que diferencia radicalmente os dois livros, além dos sentires de raízes tão distintas, sem dúvida é a ideia de Deus - aceita como milagre ou recusada como absurda e sem sentido - presente em Fim de Caso. Em comum, além da época sombria em que foram escritas, ambos podem ser reflexões sobre solidão e amor, sobre essa espécie de inescapabilidade da solidão e sobre as promessas e limites do amor para cutucar rachaduras onde a saída se reveste de pedra.

* verso de poema de Fernando Pessoa para Sá-Carneiro. "[...] porque há em nós, por mais que consigamos/ Ser nós mesmos a sós sem nostalgia/ Um desejo de termos companhia [...]".