terça-feira, 25 de fevereiro de 2014

Nós mesmos a sós

(já que está difícil escrever sobre os livros que ando lendo, resolvi começar trazendo pra cá as notas sobre livros que li há algum tempo. quem sabe assim me obrigo a cumprir a intenção de não deixar as impressões e sensações se perderem na correnteza. é que anda forte, a dita cuja. e aí haja braço pra se ancorar nas margens...).
Depois de ter escrito de ter revisto o filme e escutado a trilha do Les chansons d'amour incontáveis vezes, fiquei pensando no amor e na solidão. Parece um pouco cinza dizer assim, como se eu andasse triste ou melancólica, mas não é bem isso: é mais um exercício de pensar que a beleza do filme se produz bem nesse interstício entre um amor duradouro, com todos os seus problemas, e certa solidão que nem mesmo a companhia parece fazer desaparecer. Ainda assim, se alguma chance de escapar existe, a aposta é ainda no amor - na presença de outro, que nos ama e a quem amamos, que nos toca, nos abraça, que modifica o mundo ao enchê-lo de sinais.

E depois de rever o filme, pensei também no conto-novela do Caio Fernando Abreu, "Pela Noite" (Estranhos Estrangeiros: São Paulo, Companhia das Letras, 2002), de que gosto tanto e que fala também de modo tão dolorido sobre desencontros e sobre a graça do encontro - reconhecimento e mergulho cego no outro, no corpo do outro. E que armadilha que, como nós, o outro também tenha um corpo por continente, um corpo vivo que pulsa, sangra e goza, mas que também muda de ideia e parte ou, exagero de abandono, morre.

Com todas essas coisas na cabeça, ainda fui ler O fuzil de caça, de Yasouchi Inoue. Quem me falou do livro havia mesmo comentado sobre a excessiva solidão da personagem, mas é realmente impressionante como Inoue - ao lançar mão das cartas para contar a história - nos coloca em uma posição de solidão parecida à de Josuke Misugi. Como a personagem, ficamos na mesma posição de ler e aceitar as decisões de três mulheres importantes em sua vida, que ao mesmo tempo em que escrevem para ele, escrevem apesar dele, escrevem para se livrar dele. É tão triste e tão exato que a personagem principal quase não apareça, senão do modo como as três mulheres o pronunciam.

O livro é de 1949 e os ecos da experiência da II Guerra aparecem aqui e ali. Não apenas por isso,  me fez lembrar, embora não imediatamente, do livro de Graham Greene, Fim de Caso. O livro de Greene é de 1951, e acabei me lembrando dele principalmente por conta de um elemento que - para mim - pareceu bastante estranho na narrativa de Inoue: a presença da ideia de pecado.

A indicação do livro de Inoue me foi feita em meio a uma conversa sobre literatura japonesa e também em meio a um comentário sobre o estranhamento provocado, numa mesa sobre desemprego e experiências de desempregados, pela apresentação de pesquisadores japoneses que apontavam a centralidade do sentimento de vergonha para a compreensão das experiências subjetivas dos desempregados japoneses. Participando da mesa, havia finlandeses, alemães, suecos... e eles eram visivelmente incapazes de compreender que fosse possível alguém sentir vergonha; culpa, certamente, mas vergonha? São matrizes de codificação moral bastante diferentes.

Por isso me espantou tanto a sedução que a ideia de pecado assume na narrativa de Inoue - algo que agrega ao "erro" o peso do segredo. O interessante é que é uma ideia de pecado ela mesma estranha (para nós, ocidentais), pois que à revelação não sucede nenhuma salvação; à revelação parece suceder a súbita compreensão justamente da inadequação da própria sensação de pecado. O peso não vai embora devido à  algo como uma expiação, mas porque é o próprio pecado que se dissipa.

A solidão, no romance de Inoue, parece vir do oco dos rituais, símbolos e códigos. A distância irremediável a que todos os personagens estão submetidos, em relação uns aos outros, marca um absoluto desencontro. E aquilo que podia assumir o caráter de ponte - as cartas honestas e claras dirigidas à Josuke Misagi - revela uma ruptura ainda mais intensa, dando realidade a uma solidão que já se inflitrava pelos poros daquela vida.

Muito diferente, portanto, da tensão e da angústia de Fim de Caso, em que o pecado nunca pode ser expiado, mas é amenizado por meio de uma distância artificialmente criada: solidão auto-infligida e imposta ao outro, visando uma salvação absolutamente mundana. O que diferencia radicalmente os dois livros, além dos sentires de raízes tão distintas, sem dúvida é a ideia de Deus - aceita como milagre ou recusada como absurda e sem sentido - presente em Fim de Caso. Em comum, além da época sombria em que foram escritas, ambos podem ser reflexões sobre solidão e amor, sobre essa espécie de inescapabilidade da solidão e sobre as promessas e limites do amor para cutucar rachaduras onde a saída se reveste de pedra.

* verso de poema de Fernando Pessoa para Sá-Carneiro. "[...] porque há em nós, por mais que consigamos/ Ser nós mesmos a sós sem nostalgia/ Um desejo de termos companhia [...]".

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